A primeira vez que eu trabalhei em cinema foi efectivamente no Jaime, do António. O António foi o realizador. Eu não assinei (tinha oportunidade de assinar como realizadora), achei, honestamente, que não devia assinar. Aí funcionei como assistente de realização. Colaborei na rodagem e na ideação do que se ia filmar, fui eu que descobri quer o doente - que já tinha morrido – que o trabalho em que se baseou o filme, que não é uma biografia. O doente estava morto e nós tentámos fazer uma homenagem digna. Aprendi nesse filme a fazer cinema. Gostei muito de o fazer. É um filme de compromisso tem pouca ficção porque não nos atrevemos a inventar sobre uma pessoa que, para além de já não estar viva, tinha sido doente mental quase durante 30 anos. É muito difícil abordar pessoas doentes, não faltar à verdade a essas pessoas. Falámos com a família, com a viúva, com as filhas, colectámos todos os desenhos que havia disponíveis, que já não eram muitos, tinham sido destruídos no próprio hospital.
Foi enquanto médica psiquiatra que descobriu o trabalho do Jaime?
Não. Eu estava no Porto a trabalhar. Tinha-me formado em Medicina, tinha escolhido Psiquiatria, e por não haver nessa altura Psicanálise no Porto, mudei para Lisboa.
Quando entrei no hospital Miguel Bombarda vi numa parede um desenho fabuloso, mas pensei que era uma cópia – eu já conhecia o museu de Lausanne e a chamada Arte Bruta. Portanto, vi uma coisa espantosa na parede, tão boa que pensei que era uma cópia. Isto era no meu gabinete, onde eu trabalhava; um dia, passo mesmo ao pé do desenho, verifico que era feito com esferográfica e pergunto de quem era. Dizem-me que era de um senhor que tinha acabado de morrer, por uns meses eu não o conheci. Mas percebi logo que aquilo era excepcional e fomos juntando os desenhos.
Participou na concepção do “Jaime”?
As ideias para este filme foram na maior parte do António, foram baseadas nos desenhos. Usámos uma máquina especial – a truca -, que se aproximava perpendicularmente ao desenho esticado entre duas transparências. As poucas saídas documentais foram no rio Zêzere, perto da Covilhã, no Fundão, onde ficava a casa de lavoura onde ele tinha trabalhado, até se notar que estava doente e ter sido internado. Tínhamos ideias fabulosas, mas lembro-me que a maior parte das ideias de que falámos não foram transpostas.
Tiveram apoio de alguma instituição para fazer o filme?
Eu não fui produtora, nunca fui. Não lhe posso dar dados concretos. Acho que a Fundação Gulbenkian, que sempre nos ajudou, deu uma parte. O filme foi feito com 800 contos, uma ninharia. O Acácio de [Almeida], director de fotografia foi pago, nós não ganhámos absolutamente nada. A montagem foi feita por nós, foi um filme barato. Foi feito em 35 mm, com os restos que havia no Centro Português de Cinema (também para optimizar o que lá existia), onde estava o Fernando Lopes, a Noémia Delgado, nessa altura na sala ao lado a fazer montagem, e também o Artur Semedo...
Foi aí que começou o seu amor pelo cinema?
De cinema, gostei sempre. Mas fazer cinema foi através do Jaime. Apercebi-me das engrenagens e percebi que era difícil. É uma parte complexa e apaixonante.
“Trás–os–Montes” foi um primeiro filme realizado por si e pelo o António Reis.
Nós no Trás–os–Montes fizemos uma saga: vínhamos todos os anos aqui para Trás–os–Montes e fazíamos milhares e milhares de quilómetros, de Land Rover – à nossa custa, claro. Chegámos a viver algumas dias em aldeias próximas de Bragança, fotografando onde mais tarde filmámos, anotando as épocas de floração das árvores para depois ser fácil escolher lugares alternativos. Há muito trabalho antes da rodagem do Trás–os–Montes, milhares e milhares de quilómetros. Neste filme, fomos os argumentistas, fomos os realizadores, fizemos a montagem, fizemos tudo menos a produção.
O que pretendia criar e mostrar com esse filme?
A linguagem fílmica é uma linguagem muito própria, a única que não se pode reduzir a outra, nem por palavras nem por traillers. Nós queríamos traduzir em linguagem fílmica o nosso encantamento com as gentes, os animais, as paisagens e o modo de vida desta zona. Quisemos traduzir a maravilha que sentíamos.
Em dada altura, os personagens aparecem com vestes de outros tempos. Há um hiato temporal, passa–se para um ambiente algo “fantástico”. O que significa essa passagem de um quotidiano contemporâneo para essa outra realidade?
Nós tentámos não fazer essa parte "fantástica". Fizemos uma realidade já trabalhada que é aquela que se filma - colocando a câmara num sítio estamos já a condicionar a tomada de vista -, mas não fizemos um documentário. Trabalhámos o modo de recolher os dados visuais e sonoros. A certa altura, apercebemo-nos de que havia uma espessura histórica nesta terra. As pessoas já não estavam cá, os castelos estão desfeitos. Mas houve uma espessura temporal, aqui viveu gente há muitos, muito anos, continuamente, os filhos dos filhos dos filhos. E através disso quisemos dar uma respiração ao filme. A intriga linear de um filme é A dá B, B dá C; por vezes, há uma pequena troca e o espectador segue alegremente esse suspense e fica aí na conclusão; ora nós fizemos isto em registos de música – como costumávamos dizer - e são tempos e são ritmos diferentes, mas são um Trás-os-Montes que nos pareceu que poderia ter sido assim. Portanto, falar destes camponeses, mas não só no século XX, sempre noutras épocas, porque nós encontrávamos vestígios dessa vida.
O “Trás-os-Montes” é produzido em 1974-75. O vosso filme seguinte foi “Ana”, produzido em 1981, e também decorre em Trás-os-Montes, tal como o último.
Decorrem todos em Trás-os-Montes. O Ana já foi um pouco diferente. Nós tínhamos feito o Trás-os-Montes. O Trás-os-Montes foi feito com uma paixão e uma novidade incrível. O Ana foi mais pensado, porque estávamos na posse de muitos dados, conhecíamos esta terras, tínhamos pessoas conhecidas em todo o lado, se nós fazíamos as coisas de uma maneira errada essas pessoas corrigiam-nos, tentámos não ser infiéis às coisas que víamos. O Ana foi mais consciente, dominávamos melhor o instrumento; por isso, as pessoas acham-no mais seco, mas o Ana é mais rico, muito mais bem feito. Nunca ninguém analisou bem estes filmes. Porque os nossos três filmes são como pedaços de filmes que rimam mais tarde, ou que são anunciados antes, tal como na música. Nunca ninguém analisou um só desses filmes, nem aqui nem em França.
O “Rosa de Areia” é produzido em 1991. Que relação tem com os filmes anteriores?
São variações do mesmo tema. E há talvez um maior domínio dos meios, fazíamos as opções mais rapidamente.
Eram filmes muito trabalhados conceptualmente. Como era a fase de pesquisa?
Eram muito trabalhados conceptualmente e, depois, tentávamos que sensivelmente fossem de uma frescura espontânea – o que é mentira, dado que dava muito trabalho criar essa aparente espontaneidade. Mas os filmes que poderíamos ter feito a seguir iriam beneficiar de todo esse trabalho, e é por isso que dói parar. Se os planos nem sempre corriam como desejávamos, aprendíamos para o futuro. Aprende-se imenso fazendo, bem ou mal. Foi isso que doeu mais, não continuar a trabalhar. A pessoa começa a dominar um meio de expressão, que é o cinema, e de repente obrigam-nos a parar por condicionamentos externos.
Falemos da pesquisa que faziam, que era de certeza muito grande e muito aprofundada.
É difícil. Eu e o António tínhamos um modo de trabalhar que... talvez haja mais casos destes no mundo, mas pessoalmente não conheço ninguém. Nós tínhamos longas conversas, falávamos horas e horas por dia, trocávamos pontos de vista, fatalmente; duas pessoas que se entendem bem, que não se criticam uma à outra mas também não se inibem de dizer: "Esta ideia fílmica pode ser aperfeiçoada", forçosamente. Funcionando ao mesmo tempo, conseguíamos evitar que se caísse no patético, no lesser than life. É o que eu chamo ao cinema português, é menor que a vida, ainda é mais chato que esta vida de aldeia global! Nós procurávamos potencializar o que víamos, e realmente respeitávamo-nos muito e trabalhávamos – disse isso para uma entrevista francesa – como se fossemos um grupo, um grupo de confiança. Nós não dizíamos ao outro: "Essa ideia não presta", dizíamos: "Vamos pensar bem acerca dessa ideia, não acho que seja isso". Mas o que falávamos não era: "Aquela mulher falou assim e deslocou-se assim"; era: "Isto ficava bem encadeado desta ou daquela maneira. Era uma pré-montagem.
Houve algum nome da pintura, da literatura, da filosofia, do cinema ou mesmo da psicanálise que tenha sido significativo para o vosso trabalho?
Não, no meu caso, não. Tenho imensas influências porque leio imenso e realmente as minhas ideias não são "originais", são fruto da minha experiência e do que as outras pessoas me têm transmitido, pessoas já mortas, que escreveram. Mas não me lembro de ter pegado numa ideia e de a ilustrar, nunca peguei numa ideia de um livro mesmo que goste muito da pessoa que estou a ler. Não, as pessoas influem em mim de uma maneira profunda, ajudam-me a ser um humano diferente, a encontrar raízes. Tenho-as, é evidente. A minha experiência não seria nada se eu fosse cortada das minhas fontes de informação. Devo tudo a toda a gente, é o mais que posso dizer. Agora, esse tipo de influencia consciente, isso não, nunca. Isso traduz-se fatalmente num cinema inferior.
Queria dizer que, tendo em conta que qualquer um desses filmes é um cinema muito especial, muito conceptual...
É irrepetível. Por isso acho um crime terem-nos cerceado o Pedro Páramo. O António ainda estava vivo, foram cerca de dois anos. Era a nossa saída da província pela primeira vez. Era o culminar do que tínhamos feito até ali.
O Pedro Páramo era o vosso quarto projecto, mas não conseguiram apoio do IPC.
De todo!
Voltando um pouco atrás: o “Trás-os-Montes”, o “Ana” e o “Rosa da Areia” fizeram o percurso dos festivais.
Andaram e andam, por todo o mundo. Nos festivais grandes de muito movimento, como o Festival de Berlim, perdem-se. Já depois do António morrer, fui várias vezes a França, mas a primeira vez adorei. Era numa aldeiazinha que só tinha uma rua. Não me esqueço nunca, foi a primeira homenagem ao António, apenas uma rua, casas de um lado e do outro. Estava lá muita gente dos Cahiers du Cinema. Um festival pequenino com poucos filmes e gostei imenso. É um dos festivais que está na minha cabeça, em Lussas (Ardèche), a sul de Lion.
Não havia um determinado tipo de festivais em que os filmes fossem acolhidos de outra forma?
Os grandes festivais são como as feiras, com carrosséis, propaganda, certas "vedettes", essas coisas...
Algum dos vossos filmes teve exibição comercial em Portugal?
Sim, o Trás-os-Montes, o Ana e o Jaime. Só o Rosa de Areia é que não entrou em circuito comercial. E por uma razão: a Inforfilmes estava a dissolver-se, o filme pertence à Inforfilmes e aquilo está complicadíssimo. O Trás-os-Montes foi exibido primeiro em Bragança, numa sala de cinema, depois em Miranda, porque os actores eram todos daqui; foi exibido no largo porque não havia sala de cinema na altura; e depois em Lisboa foi exibição comercial. O Jaime, com muita honra para nós, foi estreado com o Couraçado Potemkine [de Serguei Eisenstein]. Lembro-me do António ter ficado muito orgulhoso por os filmes estarem juntos.
Como foi a reacção da crítica aos vossos filmes?
A crítica sei-a toda, porque está coleccionada, tenho um dossier impressionante, dado que tive de o fazer para concorrer como o Pedro Páramo. Concorri duas vezes por ano, durante oito anos – mais dois anos com o António, foram dez anos. A crítica era muita boa, em geral; o João Lopes, o Leitão Ramos, o João Mário Grilo por vezes também falava bem; nos actores, o Artur Semedo... Agora não me estou a recordar.
E o público?
É evidente que são filmes que o público entende mal. Diga–me uma coisa: o público gosta da Roda dos Milhões, como é que vai perceber um filme como os nossos, tão trabalhados? São pedaços de gourmet, para quem percebe de filmes, e mesmo assim... Não têm o que o público está habituado a ter, apoios de atenção: uma jovem, sexo, violência, acção rápida, que é o que estão a fazer certos portugueses, estão a tentar ir por aí.
Concorreu durante dez anos com o projecto “Pedro Páramo”, e desistiu de fazer cinema porque o projecto nunca foi aprovado.
A concorrer, legalmente. Com curriculum, com sinopse, com planificação, com nomes de actores, com co-produção espanhola, com co-produção francesa, com co-produção italiana. Foram mudando, inclusive. Só na Suíça tivemos já os dois ou três projectos de co-produção que ao longo do tempo foram caindo, claro. Tive sempre co-produção, tinha era de arranjar dinheiro aqui também.
A única razão porque não voltou a filmar foi porque não teve a comparticipação nacional, portanto.
A razão porque eu não filmei foi porque deixaram fazer filmes portugueses outros que não os meus.
Por vezes os filmes da Margarida e do António Reis são um pouco comparados com o cinema do Jean Rouch. Sente alguma afinidade?
Não sinto. Gosto muito do Jean Rouch, do que vi gosto imenso, mas não tem nada a ver connosco. Ele faz um filme etnográfico. Eu sou suspeita, gosto do que ele faz, gosto de etnografia e ele diz coisas lindíssimas; mas o Jean Rouch está muito perto da recolha etnográfica.
Quais são os escritores para si mais significativos?
Novalis, está ali, nunca me separo. Montaigne, Kafka. Dizem que existiu o Homero, A Ilíada. Rilke, Jean Follain, René Char, Lautreamont...
E pintores?
Adoro o Goya, o Paul Klee, o Rembrandt, o Bacon, o Mark Rothko, o Velasquez, os Flamengos...
Gosta mais de romance ou de poesia?
Não gosto de romance. Adoro poesia.
E cineastas?
Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Jean Rouch, Dovjenko, Eisenstein...
Se lhe dessem a oportunidade de ter todo o dinheiro que quisesse para fazer o que quisesse, o que faria?
Queria ser astronauta. Gostava de fazer parte de uma missão tripulada, da próxima, que vai a Marte. Quer uma coisa mais terrena? Uma coisa mais terrena, era assim: congelar o dinheiro da cultura para o cinema durante vinte anos e só deixar fazer filmes aos jovens. E castigar os cineastas que nos últimos onze anos estiveram a fazer coisas. São duas atitudes drásticas.
Tem acompanhado a produção cinematográfica dos cineastas mais jovens?
Sim, os que tenho podido ver na Cinemateca. Vi o Manuel Mozos, a Teresa Villaverde, o Pedro Costa, sei lá...
E a produção de curtas-metragens?
Não vi. Aqui em Trás-os-Montes também não é possível! Mas em relação ao documentário tenho uma experiência muito gira. Eu tinha um partis pris, e uma pessoa com partis pris é uma pessoa idiota; eu dizia que o documentário não é trabalhado, é inventado, porque a realidade não acontece como surge no documentário. Logo, o documentário será uma arte menor. Depois, vi em Ardèche um documentário sobre um nazi: eram dois filmes, um sobre um nazi e o outro o making of desse filme. Foi de noite e eu tive vómitos, tive uma reacção visceral e converti-me ao documentário. Era uma coisa pungente, chamava-se Unser Nazi, O Nosso Nazi. Foi feito por um cineasta que entrou como actor no Brandos Costumes, do Seixas Santos. Uns tipos deslocavam a câmara em círculos à volta do nazi. O nazi não era um actor era de facto um nazi, daquele que se tinha conseguido apanhar, um individuo de meia idade que acedeu a fazer a entrevista. Era tipo pergunta, resposta: "Fez isto e isto e isto?", "Fiz", "E o que é que sente?", "Nada, era o meu trabalho". A certa altura, começa-se a levantar dentro de nós um sentimento muito estranho, que é o de que estes também a torturar o nazi! Por quem me vou dividir? Isto só analisei muito tempo depois. O nazi repugnava-me, porque era um nazi verdadeiro e estava voluntariamente ali, não tinha nenhuma sensação do mal; ao mesmo tempo era idoso – e vem a ideia do pai –, os outros eram novos. Nós não sabíamos para que lado nos havíamos de virar; eu tive de vomitar, coisa rara em mim; não choro em filmes, quando muito posso-me rir. Aí disse: podem fazer-se coisas lindíssimas a partir seja do que for, é preciso é ter talento.
Alguma vez pensou esquecer completamente o facto de durante dez anos não obter apoio financeiro para o projecto e...
Era só a comparticipação portuguesa, a que eu tenho direito, porque eu pago impostos. Era só a contribuição portuguesa, porque o resto eu arranjava lá fora. As co-produções é assim que funcionam, dá-se aqui uma fatia do orçamento e depois os co-produtores avançam. Não posso é passar para o apoio externo sem a quotização portuguesa. E foi isso que me fizeram, sempre me impediram na primeira fase. Cheguei a ficar em segundo lugar, eles não me punham nunca no fim da lista, andaram a gozar comigo mesmo. É opinião minha e dos meus amigos.
Nunca pensou pôr uma pedra em cima de tudo isso, comprar uma câmara de vídeo e começar a fazer os seus filmes, já noutra perspectiva?
Não, não. Eu não tenho jeito para filmar, não sou boa técnica. Tenho ideias. Normalmente, o operador ajuda-me, eu digo: "Quero isto, ponha a técnica e faça-me isto desta maneira". Tenho ideias visuais muito nítidas. Por exemplo, em relação ao Pedro Páramo tenho as cenas todas na cabeça, podia fazer esquemas. Cheguei a ir duas vezes ao México, havia sítios que inclusive já tinha escolhido.
O filme passa-se no México, portanto.
Só os exteriores, que até nem são muitos, para ser mais baratos. Os interiores far-se-iam aqui para rentabilizar, estava tudo já esquematizado.
Acha que o facto de ser mulher pode ter tido alguma importância para não ter recebido a comparticipação?
Eu pensei nisso no princípio. Primeiro: "Não vou ser paranóica, não me dão agora dão-me depois!"; depois, pensei: "Será por ser mulher?". Mas não era! Porque a Maria de Medeiros fez, fez a Teresa Villaverde e fez a Margarida Gil. E eu concluí: "Não, não é por ser mulher, então porque será? Será porque eu pus o meu nome primeiro no Rosa de Areia e o do António a seguir?" Mas não. As pessoas que foram enterrar o António, os seus colegas do cinema, portaram-se muito mal. Pena não tinham nenhuma – eu não vi, mas pessoas minhas amigas viram. Também não era por eu estar a querer fazer cinema sem o António, portanto. Finalmente, gostava que me explicassem esse mistério, porque se repetiu, foi uma recusa tão nítida, que houve qualquer motivo que se prolongou nos vários júris. Saber qual é, não sei. Gostaria que me dissessem. Não é por eu ser mulher, não foi por não ter cumprido as exigências, apresentei os documentos na hora certa, etc. Faltou-me uma coisa: ter uma boa cunha, nas antecâmaras perversas das atribuições de subsídios para o cinema.
O cinema em Portugal faz-se através de cunhas?
É só cunhas, não tenho a mínima dúvida. E os cineastas portugueses, conheço bastantes, trabalham não pelo cinema, mas porque precisam de ganhar algum dinheirito, dado que eles não têm uma profissão regular fora do cinema. Os subsídios são-lhes dados pelo Estado, eles nem pagam impostos, coitados, têm uma sorte doida. São os mesmos de ano para ano, "tu ganhas este ano, daqui a três anos ganhas tu", e fazem estas estratégias. Esta é uma das partes do mistério. Agora, porque é que me seleccionaram sempre para fora, a mim, eu? Não sei. Eles pertencem a gangs pequenos, uns com os outros e eu não pertenço a nenhum gang.
O que é mais importante para si, na vida?
A amizade, a amizade.
Como é que vê a história do cinema português desde 1974, altura em que começou a participar?
Eu não sou idónea nisso. E se já não era antes, agora muito menos. Não vou falar sobre o cinema português, que aliás acho que não existe. Há películas filmadas, muitos metros, muitos quilómetros de película filmada, mas cinema? Diga-me algum, ou alguma obra menor que o cineasta a seguir tenha melhorado um pouco. Se me disser, eu respondo: "Ah! Pois, não tinha visto!" Mas a minha teoria é que não há cinema português. Há uma porção de pessoas que impressionam película, com tendências de teatro filmado, místicas num caso, thriller noutro e, ainda, episódios descarnados da guerra no ultramar, melodramas...
Em relação à forma como as pessoas fazem ou conseguem fazer cinema, acha possível que se venha a alterar?
Na questão chamada cinema, sou pessimista. Acho que as pessoas já deram provas de que não fazem nada e continuam a receber subsídios. E as pessoas novas, que poderiam ter pontos de vista diferentes – pelo menos havia a suspeita que poderiam fazer filmes bons – não têm oportunidade. Portanto, há muita gente que poderia fazer bons filmes certamente, se a política de subsídios fosse mais justamente distribuída; mas não era com júris destes, que são tão "isentos".
A sua experiência como psiquiatra influenciou o seu trabalho?
No cinema não. Tenho uma faculdade de visualizar cenas desde criança. Ponho facilmente uma ideia minha em cena, no cinema. Com facilidade sei qual é o melhor ponto de vista, como se resolve na cena seguinte. No Jaime, descobri que sei pôr imagens em movimento. E sons. Sei fazer isso.
Há quantos anos não apresenta o projecto?
Há dois anos.
Quais são actualmente os seus projectos?
Viver em paz. Fazer felizes as pessoas que se chegam a mim.
Dados auto-biográficos
Nasci em 05.07.1938
Em Mogadouro, distrito de Bragança.
Licenciada em Medicina pela Faculdade de Medicina do Porto.
Filmografia
1974
Assistente de realização, de som e montagem de Jaime, de António Reis
35mm, 35´, cor-p/b.
1976
Trás-os-Montes, (1976),16mm, 110´, cor
Realização, argumento, som e montagem em parceria com António Reis
1985
Ana, 16mm, 115´, cor
Realização, argumento e montagem em parceria com António Reis
1989
Rosa de Areia, 35mm, 105´, cor
Realização, argumento e montagem em parceria com António Reis
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(C) fotos de ilda teresa castro
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