“Quando do nascimento de artes como a música, a dança e a pintura, terá havido provavelmente a intenção de comunicar aos outros informação sobre ameaças e oportunidades, sobre tristeza ou alegria, e sobre o modelar do comportamento social. No entanto, em paralelo com a comunicação, a arte teria também produzido uma compensação homeostática. Se assim não fosse como teria prevalecido?”
(Damásio, 2010:361)
MAPACORPO projecto de dança que apresenta duas intérpretes, um músico e um artista plástico em palco. Cartografia onírica que se constrói na intersecção dialógica de três paisagens de composição, a paisagem do movimento dos corpos, a paisagem gráfica e a paisagem sonora. Movimentos coreografados que se consubstanciam na imagética entrelaçada de aves ondulantes em angulosidades que se metamorfoseiam no acelerado crescimento de plantas, caules e bolbos, asas que se espraiam e regressam ao centro para abrir de novo, partir e retornar. Retornar ao centro, à inscrição uterina com que o espectáculo começa, dois corpos que se fundem num corpo duplo, alteridade de si mesmo - és tu o duplo de mim ou és o outro em que me projecto, com quem me interligo, fundo e de quem me separo? -, no seio de um círculo matricial unificador onde este corpo se liga e desliga mantendo-se conectado. O que é próprio do sonho é a mudança errante, viagem das imagens onde o círculo se substitui ao quadro, território delimitado, cadrage onde de novo se (re) constrói o encontro do duplo para retornar ao corpo, desta feita retorno mais literal, materialização de um conceito geográfico, territorial, do esqueleto, fusão de dois corpos orgânicos com um plano de projecção gráfica, desenhada, projecção mental pois tudo isto é mental, corpo-mente em devaneio ou, nas palavras da coreógrafa, corpo que projecta o movimento ordenado e desordenado da mente.
Tessitura musical intersticiada na composição tripartida, malha subreptícia que tudo liga numa vibração tonal; catarse de osmose plástica e sonora; diálogo entre o corpo e o traço e a cor; entre o corpo e o som; entre a action painting e o lugar povoado.
A feminilidade sempre presente, sempre latente, num casulo de luz e cor, frases musicais intensas e contidas, sussurrantes ou esdrúxulas, até à exaustão de um clímax de imagem e som que apenas encontra reflexo na suspensão absoluta de tudo o que está em cena, paragem cardíaca dos corpos, do movimento, do tempo; síncope de onde tudo recomeça para retornar ao eu, desta feita a sós, em solos dialogantes ou em spots fixos, paragens retinianas onde o corpo é tela por onde ao acaso se cruza o traço ou que totalmente se cobre de neve.
De onde se retém a sensualidade do femina mas ainda no estado de pureza que quase toca mas antecede a imagética lesbos e a narcísica; de cuja latência se retêm a beleza inerente à leveza da feminilidade ainda, quase, desnudada de intenções.
E o equilíbrio da multiplicidade está sempre lá, presente, em cena, composição a quatro, equilíbrio masculino em contraponto, constructor e intencional, ainda aqui a dialogia com o duplo, com o outro, que és tu, que sou eu, mise-en-abîme de projecção do feminino masculino em mim e em ti que estás aqui comigo em palco mas estás também aí espectador, expectante, a assistir ao desenrolar de um filme de animação/concerto live, com personagens reais, em tempo real.
Évora, 16 de Outubro 2010.
Bibliografia
DAMÁSIO António, O Livro da Consciência – A Construção do Cérebro Consciente, Temas e Debates, Lisboa, 2010.
MAPACORPO
Direcção, coreografia: Amélia Bentes
Orientação coreográfica: Lia Rodrigues
Interpretação: Amélia Bentes e Leonor Keil
Apoio dramatúrgico: Paulo Filipe
Música ao vivo: Vitor Rua
Desenho digital em tempo real: António Jorge Gonçalves
Figurinos: Carlota Lagido
Luzes: Cristina Piedade
Duração: 45min
Projecto financiado pela Dgartes – Ministério da Cultura
Co-produção Centro Cultural de Belém
Produção executiva ACCCA, Companhia Clara Andermatt
Gestão financeira: Produções Independentes, Associação
Apoios: Escola Superior de Dança, Atlético Clube de Moscavide
nota: publicado em http://www.artciencia.com/
Ano VI ● Número 13 ● Outubro 2010 - Fevereiro 2011
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
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